Artigo

A ênfase clínica no tecido cicatricial sofreu uma evolução interessante ao longo do século passado. Da perspectiva cirúrgica, o foco enfatizava a formação bem sucedida de cicatrizes para prevenir complicações clínicas, como infecções, ao assegurar que as camadas epiderme e derme se tornassem permanentemente seladas para evitar hemorragia e infecção. Uma vez que a cicatriz estivesse morfologicamente estabelecida, os cirurgiões sentiam que seu trabalho estava essencialmente completo. Esta perspectiva persiste entre cirurgiões de diversas especialidades em muitas regiões. Por exemplo, Lewit e Olsanka(¹) declararam que o tópico de complicações do tecido cicatricial em seguida à fase inicial de cura não era de interesse clínico dos cirurgiões da República Checa.

Nas últimas décadas têm aumentado à ênfase no tecido cicatricial como um fator etiológico em variados tipos de patologias. Tais patologias podem incluir o seguinte: Adesões pós-anestesia epidural, causando restrições nas raízes nervosas espinais (2-4), cicatriz intra-abdominal pós cirúrgica causando disfunção visceral (gastrointestinal, urológica e ginecológica) (5-7), aumento do risco de complicações (ruptura de aderência de vasos e órgãos durante a reentrada laparoscópica) durante uma cirurgia intra-abdominal subsequente (8-11), e casos nas extremidades em que ocorrem várias síndromes de aprisionamento (12-14). Algumas dessas condições vieram à tona devido a avanços tecnológicos nos diagnósticos, como ultrassonografia para localização de adesões na parede abdominal (15) ou imagens de ressonância magnética com contraste para cicatrizes epidurais (16-18). Outras se tornaram mais comumente abordadas devido a procedimentos laparoscópicos menos invasivos (19). Em qualquer dos casos, esses cenários clínicos demonstram um aumento gradual no interesse do tópico de tecido cicatricial.

O interesse adicional no tecido cicatricial como fonte de outros tipos de disfunções tem sido abordado raramente na literatura. Huneke (20) discutiu o tecido cicatricial como um fator etiológico na disfunção do sistema locomotor, citando uma herança clínica que remonta aos anos 30. Simons et al. (21) discutiram sua impressão do impacto do tecido cicatricial na dor miofascial, declarando: “Em nossa experiência, pontos gatilho cicatriciais (na pele ou membranas mucosas) referem dor em queimação, formigamento ou golpes de dor como um raio”. A evolução terapêutica da literatura neste tópico tem enfatizado disfunção miofascial, enquanto que o tópico do tecido cicatricial patológico tem sido largamente ignorado. Portanto, Lewit e Olsanka (22) reportaram uma série de 51 casos em que tecido cicatricial pós-cirúrgico foi identificado como o gerador primário de múltiplas síndromes de dor no sistema locomotor. Infelizmente, muitos clínicos falham em compreender que o movimento do tronco ou das extremidades não envolve somente músculos, ossos e ligamentos, mas também tecidos moles. Pele, fáscia, ligamentos e tendões devem se mover em harmonia. Estas interações complexas são frequentemente subestimadas, porém são essenciais para o funcionamento normal do sistema locomotor. Como instrumentos em uma orquestra, a soma funcional é, no entanto, composta dos componentes individuais. As várias camadas dos tecidos moles precisam permanecer independentes de maneira similar.

Após um trauma, a formação de tecido cicatricial é projetada para essencialmente substituir o(s) tecido(s) que estava(m) traumatizado(s). Sob circunstâncias fisiológicas, a cicatriz tipicamente desempenha sua tarefa e os vários tecidos curados estarão novamente individualmente intactos e retornarão às suas camadas bem organizadas (23-24). Infelizmente, existem vezes em que a resposta ótima não ocorre e podem surgir complicações clínicas. Uma cicatriz que falha em estabelecer com sucesso a independência das camadas de tecidos é definida como um tecido cicatricial aderido.

Acredita-se que as adesões alteram a entrada de informações proprioceptivas da região como resultado do comprometimento da tensão do tecido. Essa falha no envio de informações (N.T: Aferência para o sistema nervoso central) pode como consequência causar uma falha na resposta motora (N.T: Eferência para o sistema musculoesquelético), levando a uma variedade de complicações como: Padrões posturais de proteção, atividade neurovascular aumentada e síndromes dolorosas (25-27). Assim, o termo cicatriz ativa é designado para descrever a atividade neural adicional em curso associada com a formação de aderências cicatriciais.

A formação de cicatrizes ativas nos tecidos pode interferir com a elasticidade e o deslizamento das várias camadas. O quadro clínico de tais cicatrizes é, portanto, similar a outras lesões dos tecidos moles em que há o aumento da resistência da derme ao movimento (devido à umidade do aumento da atividade sudomotora), há o decréscimo do alongamento da pele comparado com o lado saudável (contralateral), e a dobra de pele tende a ser mais espessa e dolorosa quando pinçada. Cicatrizes planas não se movem livremente contra o osso abaixo. Cicatrizes pós-cirúrgicas abdominais podem inclusive causar resistência palpável na cavidade abdominal, o que pode ser distinguido como sinais de possível doença visceral.

 

O diagnóstico de uma cicatriz ativa ou sintomática é, no entanto, somente o primeiro passo no quadro clínico. O segundo é avaliar sua relevância, mesmo uma cicatriz sintomática pode não ser relevante ao problema do paciente. Sua relevância só pode ser testada pelo efeito que o tratamento da cicatriz tem na condição clínica. O uso do fenômeno de barreira na avaliação palpatória é muito importante no diagnóstico e tratamento manual de um tecido cicatricial ativo. Quer o clínico alongue ou mova a cicatriz, existe sempre uma amplitude de movimento livre onde pouca resistência é encontrada. Por nossa definição, a barreira é alcançada (engajada) no primeiro ponto de resistência. Esta definição implica que a barreira fisiológica é macia; ela cede facilmente a deve ser transposta. Um movimento digital muito suave deve ser usado, o que permite que a primeira barreira de resistência seja palpada, então a resistência gradualmente aumenta sob circunstâncias fisiológicas. Este tensionamento progressivo é análogo a colocar tensão em uma mola (24). No entanto, na presença da barreira patológica, existe restrição à amplitude de movimento e a barreira estica muito pouco uma vez que é alcançada. O tratamento envolve engajar a barreira patológica e esperar; após um tempo curto, uma liberação gradualmente ocorre até que a barreira normal seja restaurada (N.T: Figura abaixo).

 O uso do fenômeno de barreira na avaliação palpatória é muito importante no diagnóstico e tratamento manual de um tecido cicatricial ativo.

Lesões nos tecidos moles, como um tecido cicatricial, podem causar disfunção locomotora. Disfunção locomotora diz respeito a programas motores, e uma lesão em qualquer elo da cadeia (incluindo tecidos moles) pode afetar o programa como um todo, como a postura, marcha e a coordenação de controle muscular do CORE (33).

Outro ponto importante é que essas disfunções ou sintomas decorrentes de processos cicatriciais podem ocorrer depois de muitos anos. A primeira  hipótese é que as cicatrizes podem permanecer adormecidas por extensos períodos em virtude de não serem nem tratadas (isto é, normalizadas) nem suficientemente provocadas. Uma variedade de fatores pode entrar em jogo, individualmente ou em conjunto, que podem provocar esta condição. Estes podem incluir um trauma menor, como um movimento súbito (N.T: De giro, evitar um obstáculo, etc.), um passo em falso, levantamento de cargas pesadas ou até mesmo um espirro, que podem colocar uma carga súbita que afete ligeiramente o tecido cicatricial (N.T: Talvez produzindo um microtrauma ao tecido aderido). O paciente pode não lembrar de um incidente banal se inicialmente não produziu dor. Segundo, contratura adicional da cicatriz pode ocorrer (23), o que aumentaria o tônus e logicamente estimularia os aferentes locais. Terceiro, fatores que envolvem envelhecimento e condicionamento físico podem ter ocorrido, como aumento de peso, diminuição do tônus de tecido conectivo e comprometimento da pressão intra-abdominal (isso quando a cicatriz encontrasse na região do abdomem). Embora isso seja especulativo, os autores desse artigo de fato encontraram indícios de que uma cicatriz ativa pode ocorrer muito tempo após a ocorrência do trauma.

 

É importante que profissionais da área da saúde forneçam um diagnóstico diferencial que descarte condições patológicas sérias. Por outro lado, deveríamos reduzir procedimentos diagnósticos inúteis, caros e frequentemente desagradáveis a um mínimo razoável. Esse equilíbrio crítico é o que ajuda a definir a arte da medicina manual. Portanto, é importante avaliar e diagnosticar uma cicatriz ativa em casos como esse. Uma vez isolada, a cicatriz deve seguir um curso de tratamento antes de se fornecer um tratamento de qualquer outra lesão diagnosticada (isto é, restrição de movimento de algum segmento, pontos gatilho miofasciais, etc.). Somente dessa forma podemos estabelecer a relevância clínica de uma cicatriz ativa (32, 33). Se a resposta for positiva e a condição do paciente melhorar de forma acentuada, então a etiologia da condição parece ter sido confirmada e o acompanhamento clínico apropriado pode ser iniciado. Se a melhora é permanente podemos descontinuar o manejo clínico adicional.

 

Adaptação do artigo: TWENTY-YEAR-OLD PATHOGENIC ‘‘ACTIVE’’ POSTSURGICAL SCAR: A CASE STUDY OF A PATIENT WITH PERSISTENT RIGHT LOWER QUADRANT PAIN. Alena Kobesova, Craig E. Morris, Karel Lewit, and Marcela Safarova. Journal of Manipulative and Physiological Therapeutics, Volume 30, Number 3, March/April 2007

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 

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Thiago Alfama

Thiago Alfama

Sou Fisioterapeuta graduado pela pela Universidade La Salle de Canoas/RS desde 2010. Apaixonado pela área que estuda e atua na reabilitação do movimento humano e pelo conhecimento que isso me proporcionou para poder ajudar pessoas a maximizar e explorar seu potencial físico. Atuo como professor pelo Instituto Fortius e também como professor convidado em diversas Instituições pelo Brasil. Em 2019, junto com meus amigos e sócios Leonardo Bazzano e Alexandre Ortiz, fundamos a Clínica Fortius. Um local que idealizamos para ser um centro de excelência em reabilitação e desenvolvimento com uma abordagem INTERDISCIPLINAR para habilitarmos nossos clientes a terem uma vida mais saudável e com qualidade.
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